"Por que vocês não estão escutando a gente?"

Publicada em 01/02/2021 - Fonte: ASCOM

Ela agora é Ari Chagas. Desde o final de 2019, é reconhecida em sua comunidade pelo seu nome social, ou seja, pela forma como se autoidentifica e deseja ser chamada, o que só foi possível em função da política de inclusão da UFSJ. Ari conta que esse processo funcionou muito bem na sua Universidade: “Mandei o requerimento on-line e resolveram tudo. Sou tratada de acordo com a minha identidade de gênero.”

Em 2016, ela ingressou na graduação em Teatro, com meta de se formar em 2022. Devido às diversas implicações causadas pela pandemia, Ari não conseguiu fazer o último período remoto, por estar com a saúde mental comprometida ou “no limbo da humanidade”, como ela mesma diz.

Aos 25 anos, Ari Chagas trabalha na internet como streamer, gerando conteúdo no Instagram sobre a vivência trans, entretenimento no podcast Tudo e Qualquer Coisa, que faz junto com o namorado Diogo Rezende, mestrando em Teatro, e nas lives diárias sobre jogos, que transmite das 15h às 18h.

“Ela me disse que era atriz e trabalhou no Hair…”
Natural de Oliveira (MG), Ari sempre estudou em escola pública. Trabalhou para fazer cursinho pré-vestibular e é bolsista na UFSJ. Escolheu o teatro porque já fazia drag, que também é uma forma de arte, na qual podia quebrar os estereótipos de gênero. Sempre gostou de brincar com o gênero de forma artística e essa foi a primeira forma que encontrou de se expressar, ainda como um homem cisgênero gay. Como, acima, a tigresa do verso da canção de Caetano Veloso.

Quando entrou no curso de Teatro, Ari nunca assistira a um espetáculo teatral. “Minha mãe até hoje nunca foi a um, me diz que não tem roupa para ir ao teatro.” Apaixonada pelo curso, foi lá que se descobriu como pessoa trans, vivendo a liberdade, a abertura para se questionar e a possibilidade de se colocar em contato consigo mesma. “Foi o curso de Teatro que me fez parar para pensar, pois antes eu preferia ignorar esse assunto, mas um dia essa questão me atropelou e resolvi arcar com ela, pois eu não aguentava mais fingir aquilo que não sou.” Ari então percebeu que a drag era mais do que apenas uma performance.

Ela quer ser atriz e trabalhar no streamer, gerando entretenimento na internet, pois sabe bem das dificuldades de ser atriz trans no Brasil. “Acontece muito o transfake, que é colocarem atores cisgênero para interpretarem personagens trans. Mas, por outro lado, eu tenho um pouco de medo de viver isso num país que não respeita nem a cultura e nem os trans. Quero viver atuando. É o que eu sei fazer.”

Revirando o preconceito do avesso
“Uma pessoa como eu estar na faculdade hoje, no Brasil, o país que mais mata trans no mundo, pelo décimo terceiro ano consecutivo, é um privilégio. As pessoas me escutam mais por eu estar aqui. Na UFSJ, não passei diretamente por nenhuma situação de preconceito. O que acontece, às vezes, é de algum professor fazer um comentário transfóbico, eu intervir e ele não reconhecer a minha vivência.”

Já no ambiente familiar, Ari explica que o mais difícil para sua mãe, que mora no interior, e não tem acesso a informações sobre sua realidade, foi entender a mudança de nome e pronomes. O que foi mais natural para sua irmã de 10 anos. “Ela foi o meu pilar, quem ensinou minha mãe a me respeitar, a dizer como devia me chamar, explicando que eu continuava sendo a mesma pessoa.”

Dia da Visibilidade Trans
Ari entende e reforça a importância do Dia da Visibilidade Trans, por ser um momento em que são ouvidos. Porém, ela entende que seu papel social exige a defesa e a ampliação dessa escuta, não somente para as questões de gênero: “Nós que somos trans gostamos e falamos de outras coisas. Discuto o gênero por uma questão de sobrevivência, para que eu seja respeitada e outras pessoas também.”

A data tem, igualmente, uma importância econômica, pois é quando as grandes marcas oferecem trabalho para as pessoas trans, em busca de representatividade. “Uma das grandes dificuldades que sinto é em relação a emprego, por isso fui trabalhar na internet.”

O recado que Ari Chagas nos deixa precisa urgentemente ser ouvido e amplificado. Diga Ari, esse espaço é seu: “Raramente uma pessoa trans é admirada. A gente existe, a gente precisa comer, beber, a gente precisa trabalhar, a gente ri, a gente também tem voz. Não somos só pessoas trans, antes disso somos pessoas. Que sejamos lembradas não só nessa data, mas que ela sirva para todos pensarem: por que não convivemos com pessoas trans? Por que não estamos sendo empregados? Por que vocês não estão escutando a gente?”